quarta-feira, 3 de abril de 2019

Sobre reality shows e velhos vícios



É interessante ver a mudança de comportamento dos participantes de reality show ao longo dos anos. Principalmente no que diz respeito a comportamento de disputa em grupo e a relação com minorias sociais.

Os melhores exemplos hoje em dia têm sido (em esferas muito diferentes) Big Brother Brasil e RuPaul’s Drag Race. Apesar de terem objetivos e construções completamente diferentes, eles têm como um dos itens mais importantes a relação entre os participantes construída nos respectivos confinamentos. E é aí que mora a grande quebra de paradigma que as pessoas que comandam esses realities ainda não conseguiram entender (se bem que RuPaul têm aprendido melhor - pelo menos é o que se vê na TV, sem considerar os bastidores).

Indo por partes:
O BBB é um programa que existe há 18 anos e que, por muitos anos, teve sua disputa baseada na divisão da casa em grupos. Não necessariamente os grupos que o Boninho definiu previamente, mas o que se formavam por afinidade. Nesse caso, os que eram “vítimas” de um “complô” acabavam por durar mais, se valendo do estigma de perseguidos e da fúria que os grupos de “vilões” formados demonstravam cada vez que tentavam, semana a semana, derrubar essa ou aquelas pessoas. 
O elenco geralmente era formado por pessoas que vinham, invariavelmente, da mesma esfera social, com algumas diferenças regionais entre alguns deles. Por isso os excluídos eram dignos da defesa do público. Bambam era isolado pela casa por ser mais limitado, Dhomini era o matuto que desafiava a inteligência dos de fato inteligentes, Jean foi o primeiro homossexual assumido no programa (André do BBB1 não tocou no assunto e Cristiano do BBB4 não havia se assumido ainda na época), Alemão era o “macho alfa” que jogava luz na masculinidade tóxica competitiva do outro grupo. Dourado foi o primeiro que teve uma vitória por ter se sentido “incompreendido” e que já representava o que o público em geral sentia ao se ver confrontado por tantos personagens não-comuns em suas rotinas (basicamente Dicésar Dimmy e Serginho Orgastic).

Passados 8 anos da vitória do Dourado, a gente vê, talvez pela primeira vez, um grupo tão diverso. São 5 negros ao invés dos tradicionais 2 e todos os representantes de minorias sociais (chamados de Baile da Gaiola - apelido maravilhoso) têm, quase sempre, um discurso extremamente eloquente e claro, ao contrário do grupo “Villa Mix” que replica as mesmas falas aprendidas e que ainda não foram filtradas na vida real.
O problema é a dinâmica. Ninguém mais se expõe ou treta. Tá todo mundo afim de conviver junto, ainda que a formação de dois grupos por afinidade seja inevitável. E aí o que faz a direção? Isca o Tiago Leifert para que ele diga o que imagina-se que o Boninho diria só que com uma pilha bem desmedida, interferindo no jogo de uma forma que, não fosse a passividade e a falta de comprometimento dos participantes com a estratégia, poderia guiar resultados.

Sobre RuPaul’s Drag Race: no ar há 12 anos, o programa evoluiu demais inclusive na qualidade do que se apresenta. O mundo Drag evoluiu muito desde que o programa está no ar. E é aí que está o pulo do gato: a cultura Drag é formada por uma série de elementos (o filme “Paris is Burning” e o seriado “Pose” retratam a maioria deles). E um dos principais elementos é a capacidade de “gongar” umas às outras com uma rapidez que dá às drags uma linda ferina (chamado de “reading” e, quando tem uma conotação agressiva, “shade”). A origem disso é a sobrevivência como um gueto numa sociedade preconceituosa onde se precisa criar casca para continuar. Essa casca invariavelmente vira uma ferramenta de leveza através do humor e de proteção, como numa família onde só quem faz parte pode falar mal um do outro. É sabido que quando uma pessoa se apropria de um xingamento contra ela e transforma aquilo numa bandeira ou em parte da sua personalidade, os algozes vão ter que procurar outra forma de detonar o colega.

Mas, assim como no BBB, muitas drags que competem nas últimas edições eram crianças ou ainda não dominavam a arte Drag quando programa começou. E muitas não eram nem nascidas quando a cultura dos “bailes” e do “shade” existia. Muitas delas já nasceram em lares onde a dificuldade de aceitação da família em relação à sua sexualidade e profissão já era bem menor ou quase inexistente. Muitas delas viraram adolescentes numa sociedade muito mais tolerante. E aí a “maldade” no tratamento que uma dá a outra nos bastidores deixou de ser aceita tanto dentro do programa quanto pra quem assiste. Ginger Minj perdeu a temporada 9 pra Violet Chatki, entre outras coisas, porque a sua cultura de “rainha de concursos” não a deixava valorizar o frescor de uma Drag nova que rompia com o que ela conhecia e que, além de tudo, achava nociva a cultura do shade dentro de um grupo ainda muitas vezes excluído socialmente.

A grande questão é o destino de programas como esses, suas capacidades de evoluir com a sociedade e se reinventarem. Mas isso só é possível olhando pra dentro. Na Reunion da temporada 10, The Vixen foi extremamente questionada a respeito do seu comportamento agressivo. Ela foi defendida por quem entende de onde ela veio (Asia O’Hara) e compreendida porém criticada por quem também entende (RuPaul herself). Claro que, por ser um show de talentos, o conteúdo é o que faz o programa continuar sendo relevante - alinhado à forma até que rápida que se adequa às discussões que ele mesmo cria, principalmente no que diz respeito à representatividade dentro da comunidade Drag, sua intersecção com a comunidade trans, as discussões de gênero e as desconstruções sociais.
Exatamente o que falta ao BBB: entender que, apesar das construções sociais, as pessoas estão mudando e, mais do que isso, as suas formas de se expressar e se relacionar estão mudando. Num momento em que o chorume nas redes sociais escorre litros e o ódio gratuito está cada vez mais explícito, observar essa forma de convivência entre pessoas num confinamento pode trazer mais beleza do que “chatice” a um reality show. A não ser que assuma-se que o propósito dele é simplesmente ser um circo dos horrores no mundo cão. Aí melhor cancelar mesmo.

PS1: RuPaul anunciou que a próxima temporada é a última. Entendo.
PS2: Rodrigo eliminado é inconcebível. E a prova de que a gente ainda tem muito o que evoluir enquanto sociedade.
PS3: Tiago Leifert não entendeu nada. Que pena.

PS4: Gabriela campeã!

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